Edson Brasil de Castro
Há no silêncio
Misericordioso do sono
Histórias vividas ou inventadas
Que é preciso contar.
Há um cão sem lua,
Um monge sem fé
Que zombam da morte
E caminham sem rumo.
Há uma trilha inteira,
Chamada remorso,
Que conduz o vil
A lugar nenhum.
Há um rei de coroa
E sem reino aparente,
Que se veste de nuvens
E tropeça nos sonhos.
Há a menina pobre
De olhos sofridos,
É a mais rica,
Pois carrega nos lábios
Um sorriso sincero.
Existo eu,
Meio ovelha
E meio lobo,
Nesse covil,
Terra de ninguém.
Existimos nós.
Um que fomos dois,
Dois que logo
Seremos nenhum.
Reflexão
O poema traz uma reflexão profunda sobre as dualidades da vida, explorando os conflitos internos, as ironias da existência e as histórias que permeiam o imaginário humano. Desde o início, há uma relação entre o silêncio e o sono, que aparecem como territórios onde memórias e fantasias se entrelaçam. Esses cenários internos são descritos como repletos de histórias que precisam ser contadas, ressaltando a importância de dar voz às experiências vividas ou criadas, talvez como uma forma de entender a própria existência.
Nos versos seguintes, as imagens do cão sem lua e do monge sem fé evocam um senso de contradição e deslocamento. Ambos simbolizam figuras que, mesmo privadas de elementos essenciais às suas naturezas, continuam a existir e zombam da inevitabilidade da morte. Essa visão sugere uma espécie de resistência ao destino ou às limitações impostas pela vida, embora sem rumo definido. A trilha do remorso, por sua vez, aponta para a inutilidade de se apegar às culpas do passado, que conduzem apenas a um vazio existencial.
As figuras do rei e da menina pobre oferecem um contraste significativo. O rei, com sua coroa e ausência de reino, representa a fragilidade do poder aparente e a desconexão entre status e significado. Em contrapartida, a menina, pobre em bens materiais, é descrita como a mais rica, carregando um sorriso sincero que transcende as dificuldades. Essa oposição ressalta a ideia de que o verdadeiro valor reside nas emoções e na autenticidade, e não nos atributos externos ou circunstanciais.
O poema culmina em uma reflexão sobre o “eu” e o “nós”, explorando a complexidade da identidade e das relações. O eu lírico se vê como uma mistura de ovelha e lobo, habitando um espaço ambíguo e caótico, uma “terra de ninguém”. A coexistência desses opostos representa a luta interna entre vulnerabilidade e força, submissão e independência. Já o “nós”, que foi “dois” e logo será “nenhum”, reflete a transitoriedade dos laços humanos e a inevitável dissolução das conexões. A obra, portanto, oferece uma meditação sobre a vida como um cenário de incertezas, onde os extremos coexistem e o significado se revela na tensão entre os opostos.